Moreno...Boina Azul...a Missão...


Você que está com um pouco de pressa, é só pra dizer que a missão que eu estava desempenhando na ONU encerrou recentemente e hoje eu cheguei no Brasil; após o trânsito. Taí a foto do antes e do depois. Meu sincero muito obrigado pelas suas orações. Forte abraço e tamo junto em 2019!
Já você que está sem pressa, leia esse textinho curto onde a felpudessência pretensiosa da minha pessoa tenta lhe contar desorganizadamente as minhas impressões que – a depender de um monte de coisa – pode lhe fazer sorrir, emocionar-se, chorar, irar-se, me deletar das suas redes sociais, refletir, dormir, ir pra guerra, alistar-se em ONGs de cooperação internacional, se vender, comprar uma arma, escrever uma carta com lápis, ser professor de matemática voluntário, ou apenas ter vontade de ir obrar, como parte da sua necessidade fisiológica que não vai ter nada a ver com o texto. Antes de começar a ler, lhe peço paciência para navegar nas inconstantes emoções que vão surgir autenticamente nas teclas de um laptop que eu comprei na promoção lá em Lisboa, mas um amigo meu disse que tinha mais barato no Brasil só pra me desmoralizar. Voltando ao tema, as emoções são sinceras, viu?.
Estimadas Senhoras e senhores,
Vou tentar ser autêntico, mas vocês sejam compreensivos. Já houveram vários outros Boinas Azuis concluindo missão e é difícil não repetir um trecho ou outro desse tipo de mensagem. E me perdoem os estrangeiros, mas acho difícil o Google conseguir traduzir esse texto de forma que você possa comprendê-lo. Quando eu escrevo em português, me sinto livre e escrevo cheio de colóquios nordestinos e neologismos.
Meu nobre e minha nobre, eu inicio lhe desapontando se está pensando que eu vou lhes contar histórias negativamente impressionantes de sofrimento humano ou feitos heróicos de um potiguar nas terras onde um revolucionário chamado Amílcar Cabral liderou um povo que conseguiu independência quando seu papai e sua mamãe provavelmente já estavam vivos e assistindo a seleção brasileira ser bicampeã do mundo.
Excetuando-se a saudade naturalmente sentida por um filho único que saiu do país pela primeira vez aos 32 anos, cruzando o Oceano Atlântico, num avião da TACV (Transportes Aéreos de Cabo Verde), com destino a Costa Oesta Africana, eu lhes digo que a Guiné-Bissau só me proporcionou coisas boas. As coisas ruins foram filha-da0putices oriundas de picuinhas em relacionamentos interpessoais que se passam em qualquer lugar daqui ou de marte. Eu vou correr o risco de ganhar vossa antipatia agora, por que vou lhes dizer que o aperreio que passa o povo que eu vi lá, eu já tinha visto cá, nos cantos escuros das cidades grandes ou no sertão nordestino. Também, como já lhes disse acima, não foi necessária nenhuma intervenção fenomenal de minha parte; eu não salvei civis de ataques armados, não salvei crianças falecendo de fome em zonas de conflito, não protegi mulheres e meninas de serem usadas como arma de guerra, não patrulhei as ruas de Bissau para garantir a ordem pública, não entreguei alimentos em vilas onde as pessoas estavam morrendo de fome, não entrei em contato com populações vítimas de catástrofes naturais, não desmobilizei ex-guerrilheiros, etc etc; veja mais abaixo que eu entro em detalhes sobre o serviço que fazíamos lá. Além disso, sobre a carga de trabalho depositada em nós, eu lhes digo sem medo de errar, que quem trabalhou na PM do RN tá mais do que pronto pra o serviço lá do outro lado do atlântico.
Eu sei que vocês devem estar achando estranhas essas declarações, mas eu só queria ser honesto e acabar com o mistério: Foi uma missão difícil e tenho orgulho de ter terminado da forma como terminei; me senti honrado de representar o Brasil e o RN; e reconheço o trabalho insubstituível da ONU na Guiné-Bissau. Entretanto, não posso ser demagógico e deixar de reconhecer que o trabalho de um policial militar comum no Brasil é digno de igual ou maior louvor. Vale lembrar que no período em que eu estive fora, a crise de segurança pública no Rio Grande do Norte chegou ao seu ápice; primeiro pelo estouro do sistema penitenciário estadual e a escalada dos índices criminais, sem esquecer, principalmente, do número recorde de execuções de agentes de segurança pública do meu Estado, que incluiu dolorosamente alguns amigos bem próximos; segundo pela crise estrutural do Estado, que chegou a deixar seus funcionários com salários atrasados e sem perspectiva de receber. Acho que agora você entende que seria muito hipócrita da minha parte ficar hiper-estimando as dificuldades da missão, quando na verdade o furacão estava ciclando sobre o terreno norte-grandense – eu vivi dilemas morais sucessivos. Mesmo assim, se vossas excelências quiserem me parabenizar ou não pela conclusão da missão, fica a vosso critério. Eu vos adorarei do mesmo jeito e informo que estou muito feliz de ter ido, visto e vencido.
Sei que alguns colegas sofrem muito e retornam danificados desse tipo de missão. Seja no bolso, na saúde, na cabeça ou na família. Já minha pessoa…. “Eu quero reclamar e não posso”. Volto sem nunca ter pego malária e/ou qualquer outro tipo de doença. Volto sem dever nada a ninguém, nem ao Banco do Brasil e ainda juntei uns realzim. Volto sem deixar nenhum laço de dependência com a Guiné em nenhum aspecto. Volto sem responder nenhum procedimento disciplinar ou criminal. Volto com muitos amigos que sinto verdadeiramente amor. Volto com poucas pessoas que preferem não falar comigo, mas elas têm razão, as vezes eu cago o pau e nem Jesus de Nazaré agradou todo mundo. Volto e recebo o abraço de todos os familiares que estavam na terra antes de eu ir. Volto agradecendo a paciência e a espera especial de Geny, Paulo, Amanda, Verônica, Armando, Flávia, Armando, Maria Thereza, Carlos Nobre, Lara, Pablo e Jaíse. Volto tranquilo, de cabeça erguida, um pouco de orgulho, consciente da missão cumprida e desejoso que tenha prestado um bom serviço pra meus colegas policiais da Guiné-Bissau.
Se você sobreviveu à arrogância dos parágrafos anteriores, continue que a parte boa tá chegando.
A minha missão na Guiné-Bissau se resumiu a dar assistência técnica e aconselhamento à Oficiais de cinco instituições de segurança interna que existem no país sede da missão, essas organizações tem grande quantidade de efetivo e, entre trancos e barrancos, são funcionais. A ONU mandatou o nosso componente policial para dar-lhes suporte a fim de que sejam instituições mais representativas, profissionais, eficientes, subordinadas e fiscalizáveis ao poder civil, sempre respeitando os Direitos Humanos e os tratados internacionais que afetam o serviço policial. Eu às vezes acho que fiz um monte de coisa massa, mas a depender da perspectiva…. talvez não tenha feito nada…. ou talvez tenha atrapalhado quem estava fazendo. Doido né? Já que o tempo não volta, vou me contentar com a satisfação de saber que fiz tudo de coração puro e pensando que estava fazendo o bem.
Deixe-me lhe contar também que durante esse período meu lado brasileiro viveu três fases que eu acho importante por demais lhe contar. A primeira delas vou chamar de descolagem, a segunda de desmistificação e a terceira geointegração.
Na primeira fase eu tive dificuldade de me desligar do Brasil e de me integrar à missão. Eu acompanhava através das redes sociais de comunicação e me envolvia em várias atividades, inclusive de trabalho, no meu país. Dentro do meu horário de trabalho na Guiné, eu me envolvia em eventos e discussões no Brasil. Minha interação com o país sede e a comunidade internacional era bem limitada. Essa fase foi finalizada depois de perceber que eu estava sendo naturalmente excluído das conversas e a última pá de terra veio entre aspas: “Tu fica calado que tu não sabe o que está se passando aqui”.
Na segunda fase da missão, “abri as cartas e quebrei os mistérios” em relação a meu estado e meu país. Percebi que não precisamos pedir arrego pra ninguém. Percebi que as polícias do Brasil não são perfeitas, tal qual as co-irmãs de além-mar não são. Percebi quão foda são os Oficiais PM do Brasil, por que conheci outros Oficiais para ter um parâmetro que não seja holywoodiano. Vi que a grama do vizinho não é tão verde assim… tem umas partes que estão mal regadas, assim como a nossa. Passei a me sentir integrado. Me senti parte do planeta e esqueci todos os meus vieses. Essa fase não acabou até o final do serviço, mas iniciou-se outra fase paralela, quando eu passei a fazer parte de conversas que antes eu não fazia.
Na terceira fase eu vi o mau. Eu vi os interesses de nações – unidas ou desunidas – vi os movimentos de blocos econômicos, vi as ações coordenadas, vi as articulações, os conchavos, vi as aproximações, vi os interesses de agências, vi a avareza, vi a soberba, vi a inveja, vi a ganância, vi o medo e a covardia, vi a falta de educação, vi a falta de amor, vi a geopolítica trabalhando naturalmente como um moedor de carne. Eu preciso estudar mais uns 5 anos pra ser capaz de escrever um parágrafo sobre isso. Me desculpe, mas não me peça pra falar sobre essa parte. Voltando para a terceira fase, lhes digo que também não foram só espinhos… as rosas vermelhas brotaram e me ensinaram que a polícia não serve pra nada se não for integrada. Somos um bloquinho pequeno de uma parede grande. Compreendi que junto de outros setores conseguimos entregar um produto mais legítimo, conforme a necessidade do nosso cliente (o povo). Por fim, vi que o diálogo, a empatia, o respeito, a ausência de preconceito, a compreensão, a tolerância, a paciência, a lealdade, o esforço e a motivação são características imprescindíveis para o “delivery as one” ser verdadeiramente posto em prática. A ausência dessas habilidades, pode tornar diplomas de especialização, mestrado, doutorado e outros em papéis irrelevantes.
- Ok Montenegro, você já me disse que o serviço não era puxado e que a Guiné não tem muita diferença do Brasil. E o que é você traz nessa bagagem, então, nada de novo?
- Meu amigo ou minha amiga…. Eu queria saber lhe responder essa pergunta. Eu olho pra essa foto do antes/depois e do lado esquerdo vejo um cabra que não existe mais e na direita um outro que eu não conheço ainda.
A missão de paz é uma coisa intensa e eu recomendo fortemente para cada um de vocês. Vou despejar um carretel desordenado de informações sobre a missão. Não vou ser fiel à pontuação – se Saramago pode, por que eu num posso?
A interação com o povo da Guiné-Bissau foi hors concurs. É um povo alegre e hospitaleiro que sabe viver a vida em comunidade. O guineense tem muito menos que a maioria dos brasileiros; entretanto, como dividem o pouco que tem, parece que têm muito mais. Eles valorizam a família e o convívio entre amigos. Absolutamente todos que eu pude me despedir olhando nos olhos me disseram pra eu ficar bem e mandaram lembranças pra minha mãe e minha família. E você via que aquela não era uma mensagem por educação; era o verdadeiro desejo dele. Se você tiver a bênção de ver o fruto do seu trabalho, vai perceber como é gratificante o sentimento de contribuição para a consolidação da paz.
A convivência social no ambiente de cooperação internacional é uma delícia minha gente. Pessoas de vários cantos do mundo, com diferentes práticas sociais, culturais, religiosas estão todos no mesmo ambiente, compartilhando momentos bons e ruins. Culinária, música, dança, roupas, símbolos, etc. Cada ser humano que você tiver a oportunidade de conhecer, será uma visita inerente ao país/religião/cultura dele ou dela. Infelizmente o país sede só serve de residência pra quem vive lá, muitos dos seus amigos e amigas vão embora durante o seu curso de missão. Foram muitas despedidas precoces. Mas não se desespere, se há vagas, outros senhores e senhoras vão ocupa-las e você vai sentir o gosto agridoce da saudade de quem se foi embora, misturado ao prazer de conhecer quem acaba de chegar com sangue novo!
E tem muito mais! O ambiente profissional de policias proporcionado pela ONU é uma nova Academia. Você tem disponível experts em variados assuntos de variadas organizações policiais do mundo. Você almoça conversando sobre tráfico de drogas internacional e janta discutindo integração de gênero. O seu intercâmbio vai lhe render um aprendizado natural pelo simples fato de compartilhar obrigações laborais. Se você não se fechar, e eu lhe aconselho a não fazê-lo, você pode integrar direta ou indiretamente o seu trabalho com outros setores como desenvolvimento, crianças, refugiados, saúde, alimentação, nutrição, habitação, assistência humanitária, suporte político, direitos humanos, justiça, defesa, gênero, e outras agências, fundos e programas – seja da ONU ou não.
Você pode aprender outras línguas interagindo com membros da comunidade internacional e também a língua local, no caso da Guiné-Bissau, crioulo. Se tiver interesse, você pode aprender um pouco sobre diplomacia e geopolítica, por que você faz parte desse corpo internacional e terá várias oportunidades para dialogar sobre o tema.
Você pode conhecer histórias de pessoas mais obstinadas que você; que tem ideais diferentes dos seus; que sofreram muito mais do que você para estar ali; que foram criadas sobre pilares que não sustentam o teto dos seus templos; você pode ouvir pessoas ostentando verdades que sempre foram mentira para você; você pode quebrar paradigmas e misturar o, antes, imisturável; você pode aprender ‘como ser’ com pessoas boas e ‘como não ser’ com pessoas más. Então, ouça esse humilde conselho e abra seus horizontes.
Findo o resumo acima que tenta descrever o novo Moreno, ainda tem mais um monte de coisas que eu tive o privilégio de experimentar, que são restritos à minha vida privada e, como isso aqui é uma rede pública, vou guardar todas essas histórias para contar àqueles ou àquelas que quiserem gastar um tempinho comigo, bebendo ou comendo qualquer coisa ou até quem sabe durante uma corridinha light.
Por aí você tira, que eu sinto que não conheço esse novo Moreno. Eu estava correndo loucamente acelerado para absorver o máximo de experiências e emoções no menor tempo possível e não tive nem tempo para ver o resultado dessa espongizada sugadora de experiências que eu dei.
Sim… ia me esquecendo… se você for organizado, você junta até um dinheirinho.
O que não é o meu caso né. Por que ‘eu tenho uma porção de coisas grandes pra conquistar e não posso ficar aqui parado’.
* COPIADO do Facebook...do autor.

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